terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Possessão, transtornos cerebrais e o problema da alma imaterial


Autor: Mario Arthur Favretto


Ao longo de toda sua existência, o ser humano tem se deparado com diversos fenômenos que não sabe explicar. Não havendo um corpo de conhecimentos conciso que pudesse ser utilizado para tal e sendo um símio imaginativo que é, desenvolveu diversas explicações sobrenaturais numa tentativa de criar respostas para os problemas que o rondavam. Desta forma, fenômenos naturais como trovões e secas, foram atribuídos a deuses zangados, bem como outras entidades sobrenaturais.
Doenças, por serem ocasionadas por seres vivos que não são visíveis a olho nu, ou disfunções desconhecidas no funcionamento do organismo humano, foram atribuídas a entidades sobrenaturais malignas ou justiceiras. Atualmente, com os avanços das ciências biológicas e médicas, muitas destas doenças que se acreditava serem ocasionadas por seres sobrenaturais, passaram a ser melhor entendidas, onde vírus, bactérias e disfunções psiquiátricas/neurológicas tornam-se explicações corriqueiras.
Conforme mencionado em texto anterior neste blog, pessoas com epilepsia, por exemplo, eram consideradas pessoas sob influência de deuses ou espíritos malignos na antiguidade e idade média, ou como pessoas possuídas por demônios, conforme afirma a bíblia cristã sobre a epilepsia, ainda utilizada atualmente (Bíblia cristã - Mateus 17: 15-18). Porém, mesmo durante períodos antigos, muitos homens ilustres procuraram uma explicação científica para a causa dessa doença, conforme diversos dados apresentados por Magiorkinis e colaboradores (2010), referente à abordagem da epilepsia no antigo Egito, Babilônia, Grécia e Roma. Atualmente, pessoas com epilepsia passaram a ser tratadas de forma digna com medicamentos e um acompanhamento médico, tratamentos desenvolvidos pela ciência.
Percebe-se então que desde a antiguidade, apesar dos esforços depreendidos por diversos pesquisadores, e de diversas fontes de informações e conhecimentos gerados, a explicação sobrenatural para doenças sem causa visível aparente continuou sendo utilizada em detrimento da realidade. Desta forma, certas doenças foram consideradas como comprovações dos anseios pela existência do sobrenatural que tantas pessoas possuem.
Um dos primeiros aspectos a analisarmos nesta situação é que possessão implica na existência de almas ou outras entidades imateriais não detectáveis por nenhuma tecnologia atualmente e que de certa forma poderia interagir com a matéria. Assim, supostamente um demônio ou alma penada, existiria de forma imaterial, mas mesmo essa imaterialidade interagiria com a matéria, alterando o comportamento de uma pessoa e utilizando seu corpo para fins demoníacos. Esta suposta possessão acaba implicando na existência de uma também suposta alma humana que seria de certa forma tirada do corpo humano, relegada a algum canto dentro da própria pessoa, enquanto a alma invasora controlaria o corpo da pessoa.
Porém, sobre o problema da alma devemos abordar as afirmações de Costa (2005):

“[...] segundo a lei da conservação da energia, a quantidade de energia do Universo deve permanecer a mesma; mas se alguma energia do mundo material se perde na alma, ou esta a introduz no mundo material, essa lei precisa ser revista. Outro exemplo: a teoria da evolução ensina que nós evoluímos a partir de espécies inferiores. Quando teria então surgido a alma? Como explicar, ademais, que precisamos de um cérebro tão grande, se uma alma inextensa [e diríamos aqui imaterial*] com certeza caberia em um cérebro do tamanho de um grão de ervilha? Como explicar o efeito de drogas e medicamentos na mente? Como explicar que uma doença como a de Alzheimer, que reduz o cérebro até um terço do seu tamanho, tenha efeitos tão devastadores sobre a atividade mental? Como explicar, em suma, o papel do cérebro? [...]” * - Adendo meu.

Se existisse uma alma imaterial e nela estivessem contidas todas as nossas lembranças, sentimentos, desejos, tudo que compõe nossa personalidade, como então doenças neurodegenerativas poderiam influenciar estas aptidões? Se existisse uma alma, como uma pessoa com mal de Alzheimer poderia perder suas memórias? Se alma possui todas estas características que serão usadas em um plano pós-vida, então não haveria motivos para nos preocuparmos com doenças e transtornos mentais. Só por estas afirmações já percebemos que as respostas para estas dúvidas implicam na inexistência de uma alma, e assim, na inexistência deste fenômeno de possessão.
O cérebro é um conjunto de neurônios que, em seu funcionamento como um todo, pode permitir um processo de emergência, onde encontramos então a consciência e por meio destas interações entre neurônios temos a formação do que chamamos de “eu”, onde não há uma divisão entre mente e cérebro, pois ambos são a mesma entidade física. Porém, longe de ser um órgão perfeito o sistema nervoso de todos os animais está sujeito a falhas, em especial por meio de excesso ou falta de produção de certos neurotransmissores que implicam em alterações na forma como o cérebro funciona. Por vezes acontecendo uma ruptura com a realidade o que poderia implicar no surgimento de alucinações, em caráter mais frequente como esquizofrenia ou em eventos isolados como surtos psicóticos, que ainda em algumas ocasiões podem ser considerados não-patológicos. Para tanto, basta que ocorram alterações no funcionamento de suas vias dopaminérgicas, por exemplo, e toda a percepção da realidade por parte do indivíduo é alterada (Brandão, 2004).
Estes estados de consciência alterada, muitas vezes seguidos de alucinações, podem ser induzidos por sugestão e manifestados por estado sonambúlico, que podem resultar em modificações deste estado por meio de respostas verbais e físicas dadas as injunções sugestivas. O indivíduo sugestionável assume de forma temporária outras identidades, confusão mental ou sonolência, além de grande desgaste físico e amnésia ao sair do processo (Nina-Rodrigues apud Almeida et al., 2007), provavelmente sendo estas induções responsáveis pelos êxtases e transes religiosos ou eventuais “possessões” em cultos.
Tal apropriação de pessoas sugestionáveis a estas situações é uma deturpação de um provável estado de saúde mental debilitado, em que as pessoas que deveriam procurar auxílio médico e não participar destas atividades, acabam sendo usadas como atrações religiosas devido a falta de conhecimento científico da grande maioria da população. Assim permanecemos como na antiguidade, com doenças sendo confundidas com possessões demoníacas.
Observe que em estudo com 115 médiuns em São Paulo, Almeida (2004) constatou que:

“[...] a mediunidade provavelmente se constitui numa vivência diferente do transtorno de identidade dissociativa. A maioria teve o início de suas manifestações mediúnicas na infância, e estas, atualmente, se caracterizam por vivências de influência ou alucinatórias, que não necessariamente implicam num diagnóstico de esquizofrenia.”

Desta forma, a alucinação não é necessariamente algo patológico, estima-se que 10-30% da população sem patologias mentais tenham tido alguma experiência deste tipo (Almeida, 2004). Essas ocorrências de “deslizes” no funcionamento cerebral contribuem para que se espalhe a ideia de visões sobrenaturais e eventuais possessões. Principalmente associadas a um ambiente de falta de conhecimento científico por parte da população e ao profundo desejo de acreditar na existência do sobrenatural, que de certa forma, seria uma confirmação das expectativas em relação à existência de um pós-morte.
Nesta discussão seria ainda importante mencionar a síndrome de Gilles de la Tourette, doença cujos sintomas já foram definidos como possessão demoníaca (Cavana e Ricards, 2013). Seus sintomas são similares aos descritos no livro Malleus Malleficarum para pessoas que supostamente estariam possuídas por um demônio (Orsi, 2011). Essa doença é um transtorno neuropsiquiátrico que geralmente ocorre na infância, mas que se prolonga para a idade adulta, ocasionando tiques motores e vocais, ocasionada por alterações neurofisiológicas e neuroanatômicas (Fen et al., 2001). Um vídeo de uma pessoa com um caso extremo desta síndrome pode ser visto abaixo. Após ver o vídeo, refletindo sobre a situação em que estas pessoas e outras que apresentam síndromes e alterações no funcionamento bioquímico e fisiológico do cérebro se encontram, não deveríamos nos esforçar para que houvesse um maior entendimento público sobre o que é ciência e medicina de verdade, e tentar reduzir a difusão de pseudo-ciências, pseudo-medicinas e crendices? O que seria de uma pessoa dessas em uma sociedade ainda tomada por crenças plenas na existência de demônios? Seria exorcizada e queimada em uma fogueira? A compreensão mais aprofundada da ciência, medicina e a prática do ceticismo diante de crenças são fundamentais para garantir que pessoas com transtornos neurológicos/neuropsiquiátricos passem a ter um atendimento humanizado e correto. Que não sejam mais vistas como aberrações demoníacas em palcos de igrejas ou rituais de exorcismo, e sim recebam o tratamento adequado para que possam seguir de forma digna com suas vidas.





Referências
Almeida, A.A.S.; Oda, A.M.G.R.; Dalgalarrondo, P. 2007. O olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe e possessão. Revista de Psiquiatria Clínica 34(supl. 1): 34-41.
Almeida, A.M. 2004. Fenomenologia das experiências mediúnicas, perfil e psicopatologia de médiuns espíritas. Tese. Departamento de Psiquiatria. Faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo. 278p.
Brancão, M.L. 2004. As bases biológicas do comportamento: introdução à neurociência. Ed. Gráfica Pedagógica Universitária. 244p.
Cavana, A.E.; Rickards, H. 2013. The psychopathological spectrum of Gilles de la Tourette syndrome. Neuroscience and Behavioral Reviews 37: 1008-1015.
Costa, C. 2005. Filosofia da Mente. Ed. Zahar. 67p.
Fen, H.C.; Barbosa, E.R.; Miguel, E.C. 2001. Síndrome de Gille de la Tourette: estudo clínico de 58 casos. Arquivos de Neuropsiquiatria 59(3-B): 729-732.
Magiorkinis, E.; Sidiropoulou, K.; Diamantis, A. 2010. Hallmarks in the history of epilepsy: epilepsy in antiquity. Epilepsy & Behavior 17: 103-108.
Orsi, C. 2011. O livro dos milagres: a ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos. Rio de Janeiro: Vieira & Lent.


domingo, 16 de agosto de 2015

Incongruências em fantasmas, assombrações e afins

Autor: Mario Arthur Favretto


Muitos acreditam que quando uma pessoa morre uma parte imaterial de si passa para outro plano, ou para outra existência, apesar de em Eclesiastes 3:20 haver a menção de que do pó veio e ao pó voltarás, pois todos vão a um mesmo lugar. Steven Pinker (2013), psicólogo evolucionista menciona que mesmo em crianças há algo no funcionamento do cérebro das pessoas que torna difícil entender a finitude da vida. Quando crescemos construímos melhor o conceito de fim da vida, nosso cérebro compreende o fim dos corpos. Ainda assim, algumas pessoas apreciam a possibilidade de uma continuidade como um consolo para a curta e sofrível existência humana.
É comum que pessoas procedam com supostos testemunhos sobre aparições de fantasmas ou de entidades sobrenaturais. Porém, há certos aspectos destas aparições que demonstram que estas podem mais ser fruto da mente humana do que a prova de uma realidade sobrenatural. Analise desta forma, para que fantasmas e assombrações usam roupas? Em muitos relatos de aparições e pessoa está usando roupas, mas para quê? A roupa é feita de tecidos vegetais, animais ou sintéticos, como esta roupa acompanha a pessoa numa vida além morte? Se a pessoa não sente frio e nem calor, pois não possui mais um corpo material, se possui mais um propósito de atender normas sociais contra nudismo e exposição de partes sexuais (que segundo dizem, anjos não possuem), então por que fantasmas e assombrações usam roupas? Não seria por se tratar apenas de um lapso no funcionamento neuronal da pessoa que fez com que ela tivesse uma alucinação?
Outra questão importante, por que os fantasmas geralmente têm uma aparência cadavérica, mórbida e assustadora? Não é por que a mídia impõe essa visão das assombrações e assim quando a pessoa por algum motivo alucina é remetida a esse aspecto? Se o corpo material é transitório, por que haveria de o “corpo” pós-morte ter a aparência de um corpo vivo ou manter todas as características do momento da morte? Se a assombração é algo imaterial, como poderia agir com o material, encostando em objetos, produzindo sons e afins, se seu meio de contato com o material já apodreceu? Ou ainda, por que as assombrações só aparecem a noite, justamente quando as pessoas estão com sono ou quando acordam em meio a noite, e assim, fica-se mais suscetível que o subconsciente interaja com o consciente produzindo uma alucinação, um sonho lúcido ou uma paralisia do sono?
Desta forma, vemos que as supostas afirmações sobrenaturais, são cheias de incongruências que levam ao entendimento de serem uma explicação inventada para outros fenômenos materiais que levam a pessoa a observar algo que não existe. Ou seja, fenômenos biológicos, como alucinações. É possível que as pessoas só aceitem a ideia de alucinação quando acabarmos com certos preconceitos associados a esse fenômeno e que assim levam a ocorrência da psicofobia, preconceitos em relação a pessoas que possam ter funções psicológicas/neurológicas alteradas. Até que isto ocorra, a explicação sobrenatural será considerada mais bela e reconfortante, afinal, serviria como um reforço para as crenças das pessoas, do que a explicação relacionada a um problema, mesmo que ocasional, no funcionamento neuronal destas.
É necessário afirmar que a alucinação não é necessariamente algo patológico, tanto que pode ser induzida por estados de estresse ou consumo de diferentes substâncias químicas. Almeida (2004), afirma que 10% a 30% da população sem patologias mentais já teve algum tipo de alucinação. Ou seja, estes estados de consciência alterados podem ser mais comuns de ocorrerem do que imaginamos, necessitando a plena compreensão de tratar-se de algo físico nos neurônios e não algo relacionado a existência de fantasmas e assombrações.
Até há pouco tempo a epilepsia era considerada como fruto de possessão, em algumas culturas divina e em outras demoníaca, porém com o avanço do conhecimento científico esclarecido que tratava-se de uma disfunção no cérebro (ver Magiorkinis e colaboradores, 2010), que pode ser medicada e tratada. Assim não precisamos mais realizar exorcismos em pessoas que tenham epilepsia, como afirma a Bíblia (Mateus 17: 15-18). Somente com a difusão do conhecimento científico, do pensamento crítico e reflexivo, poderemos compreender que os fenômenos de fantasmas e assombrações, ocorrem dentro de nossas cabeças, que podem ser ocasionais ou podem ser sintomas de algo mais sério.

Referências:
Almeida, A.M. 2004. Fenomenologia das experiências mediúnicas, perfil e psicopatologia de médiuns espíritas. Tese. Departamento de Psiquiatria. Faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo. 278p.
Magiorkinis, E.; Sidiropoulou, K.; Diamantis, A. 2010. Hallmarks in the history of epilepsy: epilepsy in antiquity. Epilepsy & Behavior 17: 103-108.
Pinker, S. 2013. Como a mente funciona. Ed. Companhia das Letras. 3ª edição. 672p.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Mundo, uma criação imperfeita

Autor: Mario Arthur Favretto



Um dos muitos argumentos que ouvimos sobre o mundo ser fruto de uma divindade é aquele que afirma que tudo é perfeito, que tudo no mundo está conectado por energias ocultas, a forma como as espécies estão conectadas, a abelha com seu papel essencial na polinização de certas plantas, o corpo humano, etc. Uma ideia de perfeccionismo onde nós mesmos seríamos considerados seres perfeitos, afinal imagens da própria divindade conforme alguns textos religiosos.

Fonte da imagem: Yathin S. Krishnappa. Wikimedia Commons.

Porém, a natureza não é um meio recheado de benevolência, ela é indiferente perante as situações humanas, em si, não é nem uma entidade imaginativa como uma “mãe-natureza”. O que chamamos por natureza nada mais é do que o resultado de múltiplas interações entre diferentes populações de diferentes espécies coexistindo em um mesmo planeta. Ao longo de milhões de anos de evolução algumas destas interações se tornaram mais “íntimas”, se especializaram, gerando esse aspecto superficial de organização perfeita que algumas pessoas acreditam que seja.
Por detrás deste manto de natureza pacífica, vemos que sua indiferença resulta tanto em resultados que consideramos belos, quanto em resultados terríveis. O mais geral destes resultados que poderíamos considerar terrível é pensar que vivemos em um mundo onde os seres vivos precisam matar ou explorar uns aos outros para sobreviver. Os herbívoros arrancam e dilaceram partes de plantas para sobreviver, prejudicando-as e estas revidam com produção de toxinas. Os carnívoros matam e evisceram outros animais para obter seu alimento. Os parasitas sugam nutrientes ou ingerem partes não vitais de suas vítimas, mantendo-as vivas enquanto vão lentamente se alimentando delas.
O próprio Charles Darwin já havia se assustado com certos aspectos violentos da natureza, como certas espécies de vespas parasitas. Estas possuem como vítimas larvas de Lepidoptera (borboletas e mariposas), nas quais as vespas injetam seus ovos, que, aoeclodirem, passam a devorar sua vítima viva, de dentro para fora. Ou o que dizer de todas as doenças bacterianas, virais ou parasitárias que matam milhões de pessoas todos os anos. Não, não vivemos em um mundo que possa ser considerado como uma criação perfeita. Se este mundo foi criado por alguma divindade, os conceitos de perfeição desta devem no mínimo ser deturpados, e acredito que qualquer um de nós poderia gerar um mundo onde não haveria tanta violência e evisceração.
Isto resulta que não devemos usar a natureza como inspiração para ética e moralidade, estes dois conceitos devem vir de uma reflexão filosófica e de resultados positivos que possam ser obtidos entre as interações humanas e destes com outros seres vivos. Algumas pessoas querem justificar certos comportamentos por ocorrerem em outros animais, comportamentos inofensivos como a homossexualidade, porém se a justificativa desta orientação for baseada na natureza, também a escravidão poderá ser, pois ocorre entre formigas. E também o estupro, a guerra, o infanticídio que ocorrem entre outros animais, como nos símios tão próximos evolutivamente de nós. Ou seja, justificativas de conduta/comportamento social não devem ser baseadas em exemplos da natureza, não obtemos ética e moralidade desta, e sim da reflexão e filosofia. Por isso que, por exemplo, a questão da homossexualidade não se justifica pela existência em outras espécies, e sim pelo fato de esta não realizar mal nenhum para outros seres vivos, trata-se apenas de uma interação amorosa entre dois indivíduos.
Diante desta indiferença da natureza, só nos resta questionar, se o mundo assim o é, nos resta apenas a possibilidade de um deísmo ou panteísmo para aqueles que assim desejam a existência de uma divindade. Um ser que criou o universo apenas para ver o que ocorreria e quais rumos seguiria, sem interferências posteriores, sem eliminação da violência da natureza. Apenas um espectador diante dos caminhos tortuosos que a evolução segue neste nosso pequeno planeta. E neste vasto mar de incertezas, nos resta a reflexão crítica, a filosofia e a ciência para ser a base moral e ética de nossos comportamentos, pois inerentemente todos sabemos quando realizamos um ato que prejudicou outras pessoas e quando este foi benéfico, esta é base de nossa moralidade.

Larvas de vespas parasitoides devorando uma larva de borboleta de dentro para fora.





domingo, 28 de junho de 2015

Preconceito e igualdade


Autora: Monica Piovesan

De acordo com o dicionário, preconceito é definido como opinião ou conceito formado antes de obter o conhecimento adequado acerca de determinado assunto. Pode ser definido também como opinião ou sentimento desfavorável, concebido independente da experiência ou da razão. Ainda, em sociologia, é a "atitude emocionalmente condicionada, baseada em crença, opinião ou generalização, determinando simpatia ou antipatia para com indivíduos ou grupos". É nessa última definição que esse texto estará focado. Nesse sentido, observa-se que nenhum tipo de preconceito é mais importante que outro e todos eles envolvem algo em comum, o sofrimento das pessoas ou geralmente, de pequenos grupos de pessoas.
Geralmente quando um desses grupos minoritários alcança algum direito, garantido por lei, existe a reação de pessoas preconceituosas com várias justificativas para invalidar essa conquista. Recentemente nos EUA o casamento gay foi aprovado, certamente um enorme passo em direção à tolerância e a igualdade. Esse deveria ser motivo de comemoração, afinal, por que devo me intrometer na felicidade dos outros, sendo que independente da forma de AMOR, não está fazendo mal nenhum para outros seres vivos?
Justificativas contrárias a essa questão foram desde religiosas até apelo à fome de pessoas ou outros animais, abandonados nas ruas ou em países pobres. Quanto às justificativas religiosas, vale ressaltar que muitas coisas escritas nos livros considerados sagrados estão ultrapassadas e são totalmente desumanas. A título de exemplo, se considerar a união de duas pessoas do mesmo sexo errada perante os olhos de deus, poderíamos considerar a escravidão como algo bom, pois ambos os assuntos possuem respaldo na Bíblia. Respectivamente Levítico 18:22 “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é.”e Levítico 25:46 “Deixá-los-eis por herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam plenamente como escravos perpétuos. Mas, quanto a vossos irmãos, os israelitas, não dominareis com rigor uns sobre os outros”.
Com relação à questão da fome, sabe-se que é de extrema importância, porém esta não depende apenas da empatia para resolução. Envolve um sistema econômico baseado na má distribuição de renda e desigualdade social, onde empresas e governos detêm riquezas que não são distribuídas igualmente entre os países.
Ao longo do texto a palavra empatia aparece, mas o que ela significa? Empatia nada mais é do que a capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa, buscando agir e pensar da mesma forma como ela agiria nas mesmas circunstâncias. Então, não é preciso ser negro para lutar contra o racismo, não é preciso ser mulher para defender igualdade de direito e deveres entre os gêneros, não é preciso acreditar ou desacreditar em uma (ou várias divindades) para defender um estado laico, não é preciso ser índio para perceber como as terras histórica e tradicionalmente ocupadas por estes povos estão sendo degradadas. Finalmente, não é preciso ser gay para aceitar qualquer forma de amor. 

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Déjà vu, neurologia e a falácia do sobrenatural

Autor: Mario Arthur Favretto


A grande maioria das pessoas já experimentou em alguma parte da sua vida uma sensação de que algo que ocorreu em um certo momento já havia acontecido antes ou de que ela já tinha visto aquilo antes em outra ocasião e o momento seria apenas uma mera repetição. Comumente esta sensação é denominada de “déjà vu” do francês, e significa “já visto” ou “já foi visto”. Porém a maioria das pessoas, por falta de um aprofundamento no conhecimento científico e, às vezes, por não saber onde encontrar informações confiáveis sobre o assunto, prefere aceitar a ideia de que isto seria alguma forma de ocorrência sobrenatural.
Como sempre as pessoas parecem querer encontrar o máximo possível de confirmações para suas crenças e anseios pela existência do sobrenatural, muito provavelmente derivado do medo da morte e de uma negação de que a vida possui um fim. Portanto, o déjà vu acaba por também ser usado para estas confirmações, com alguns grupos religiosos-místicos e alguns pseudocientíficos afirmando que a sensação de déjà vu é realmente algo que já ocorreu, mas em vidas passadas ou que são poderes de telepatia. Assim, para estes grupos, tal fenômeno neurológico seria uma confirmação de seus anseios pelo sobrenatural.
Porém, a ciência é mais bela do que o sobrenatural, que longe de ser uma resposta é apenas um consolo. Dizer que isto é fruto de vidas passadas e do sobrenatural traz mais perguntas do que respostas: existe uma alma? Se nossas memórias são armazenadas de forma bioquímica no cérebro, como podem interagir com algo imaterial e depois que a pessoa se decompôs em uma vida passada, voltar a agir novamente com a matéria de seu corpo atual? (Não vale dizer que é energia, pois energia é algo físico, não imaterial, é troca de elétrons e modificações de substâncias materiais). Onde estavam essas memórias, suspensas no ar? Se as memórias de vidas passadas ficam suspensas em um mundo paralelo para depois voltarem em outras vidas, por que uma pessoa com Alzheimer perde-as completamente? Oras, porque memórias são coisas físicas armazenadas bioquimicamente no cérebro e não coisas sobrenaturais.
Nossos humildes cérebros de símios foram moldados ao longo da evolução e como esta não produz a completa perfeição, nossos cérebros possuem falhas. O que ocorre nos momentos de déjà vu é que, provavelmente, o cérebro acessa as memórias imediatamente após “arquivá-las”, uma falha de comunicação, criando a sensação de que o fato que está ocorrendo é uma repetição. Estas ocorrências também podem ser induzidas no cérebro por estimulação com eletrodos no hipocampo e na amígdala cerebral, além de serem mais comuns em pessoas com certos tipos de epilepsia no lobo temporal do cérebro ou certos tipos de desordens psiquiátricas (Bartolomei et al., 2004; Wild, 2005).
Considerando, por exemplo, o hipocampo, ao longo do desenvolvimento do ser humano até atingir a maturidade ele é muito sensível a efeitos ambientais (ansiedade, estresse) e influências fisiológicas, sofrendo danos com efeitos de convulsões e inflamações ou de estresse psicossocial e privação de sono durante o desenvolvimento infantil. Assim, como esta região cerebral tem um papel fundamental na aquisição de memórias, situações como estas que afetam seu funcionamento ou desenvolvimento podem resultar em falhas na comunicação dos neurônios, ocasionando a sensação de déjà vu (Wild, 2005; Brázbil et al., 2012). Tanto que algumas pessoas podem apresentar disfunções neste funcionamento neuronal e passar de meses a anos tendo sensações constantes de déjà vu (Akgül et al., 2013; ver site nas referências).
O déjà vu não é um fenômeno sobrenatural, é um fenômeno físico, ocorre na comunicação entre neurônios. Indo mais além, podemos considerar que a crença da origem sobrenatural deste fenômeno, longe de ser benéfica e consoladora, pode ocultar problemas e doenças neurológicas ou outros fatores relacionados à vida cotidiana da pessoa que podem estar implicando na ocorrência deste problema. Eventos isolados de déjà vu podem ser uma simples disfunção corriqueira no funcionamento do cérebro, compatível com uma neuropsiquiatria normal, mas sua constância elevada pode implicar em causas mais sérias que necessitam de tratamento e auxílio médico (Wild, 2005). Fato que não poderia ser constatado se nós permanecêssemos na crença sobrenatural.

Referências
Akgül, S.; Öksüz-Kanbur, N.; Turanlı, Güzide. 2013. Persistent déjà vu associated with temporal lobe epilepsy in an adolescent. The Turkish Journal of Pediatrics 55: 552-554.
Bartolomei, F.; Barbeau, E.; Gavaret, M.; Guye, M.; McGonigal, A.; Régis, J.; Chauvel, P. 2004. Cortical stimulation study of the role of rhinal cortex in déjà vu and reminiscence of memories. Neurology 63: 858-864.
Brázdil, M.; Marecek, R.; Urbánek, T.; Kaspárek, T.; Mikl, M.; Rektor, I.; Zeman, A. 2012. Unveiling the mystery of déjà vu: the structural anamoty of déjà vu. Cortex 48(9): 1240-1243.
Wild, E. 2005. Déjà vu in neurology. Journal of Neurology 252: 1-7.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

A farsa dos sucos Detox e os riscos da fitoterapia


Autor: Mario Arthur Favretto


Recentemente ganhou popularidade em diferentes mídias os chamados sucos “detox” que supostamente podem eliminar as toxinas de seu corpo, por serem compostos de diferentes partes de vegetais (frutos, folhas, raízes, etc). Há mais tempo temos a constante presença da utilização de produtos fitoterápicos, extratos alcoólicos de plantas ou chás. Ambos partindo do princípio de que tudo que é natural, ou seja, se não foi manipulado pelo homem, é saudável. Apenas por este aspecto as ideias já parecem ser deturpadas, pois só pelo fato de um produto ser natural, isto não significa que ele seja saudável. A natureza possui muitas guerras, e muitas delas são guerras químicas, ou você se arriscaria a comer qualquer cogumelo que aparecesse em sua frente apenas por ser algo natural? Ou se deixar ser picado por uma serpente, por ela ser natural?
Caso você não saiba, nosso organismo possui órgãos moldados ao longo da evolução para realizar a função de desintoxicar o organismo. Isso mesmo! O fígado e os rins. O primeiro destrói diversas substâncias presentes no sangue, metabolizando-as em substâncias mais simples ou eliminando-as, como o álcool originário de bebidas. Enquanto os rins filtram o sangue, eliminando diversas substâncias tóxicas originadas pelo metabolismo, como, por exemplo, a ureia. Desta forma, se a pessoa já absorveu na digestão substâncias tóxicas, terá que contar quase exclusivamente com o funcionamento de seus órgãos para eliminá-las.
Um suco de vegetais não poderá ajudá-la. Em casos de intoxicações graves por ingestão de certas substâncias, se não se passaram muitas horas, pode ser utilizado o carvão ativado, que possui alta porosidade, e assim, pode adsorver as substâncias tóxicas quando elas ainda estão no sistema digestório, reduzindo a quantidade que será absorvida pelo organismo. E por que os sucos não servem para desintoxicação?
Plantas são seres vivos que não têm como se deslocar, como fugir ou lutar contra seus predadores, assim para se manter vivas muitas espécies foram selecionadas ao longo da evolução de forma a produzir metabólitos secundários, substâncias que não estão diretamente ligadas ao crescimento e reprodução das plantas. Mas que podem apresentar toxicidade e assim prejudicar animais herbívoros que tentem se alimentar delas. Por exemplo, qual o benefício de uma planta, como a couve ou a alface (ambas usadas em sucos detox) em se deixar ser devorada por herbívoros? Ainda mais deixar suas folhas, das quais elas dependem para realizar a fotossíntese, serem prejudicadas por um animal tentando se aproveitar dela. Como solução, variedades destas plantas que possuem maior quantidade de toxinas conseguem ter maior sucesso reprodutivo e, em consequência, aumentar os genes da produção de toxinas nas populações da espécie.
Ao longo de milhares de anos os seres humanos vêm realizando seleção artificial de forma a obter variedades vegetais mais palatáveis, porém ainda hoje temos plantas que ainda possuem toxinas contra herbivoria. Muitas delas são vegetais com gostos amargos, como agrião e rúcula. E até mesmo essa percepção de gosto amargo pode variar conforme a pessoa, se crescemos ingerindo estes vegetais com toxinas, nosso fígado pode acostumar-se a eliminar estas substâncias de nosso organismo. Enquanto para outras pessoas não. É provavelmente por este motivo que o brócolis pode parecer mais ou menos amargo dependendo da pessoa e da capacidade de desintoxicação de seu fígado (Nesse & Williams, 1997)! No caso deste vegetal, a presença de polifenois e taninos podem prejudicar as mucosas intestinais e também reduzir a absorção de certos nutrientes (Santos, 2006). Ou seja, os vegetais não realizam a desintoxicação, nossos órgãos sim.
Devemos ressaltar também que a ingestão de toxinas vegetais ocorre não apenas na alimentação, mas também por meio de remédios fitoterápicos, pois estes também lidam com os metabólitos secundários de plantas, sem, no entanto, isolá-los. Ou seja, assim como você poderá ingerir uma substância com potencial terapêutico, estará ingerindo uma dezena de outras que podem prejudicar ainda mais o seu organismo. Por exemplo, o uso de chás de flores ou folhas Passiflora (maracujás) para fins sedativos e calmantes resulta na ingestão de diversos alcaloides e flavonoides, e até de cianeto, dependendo a espécie deste gênero, resultando em efeitos adversos cardiovasculares e gastrointestinais. Outra planta, Plantago ovata é indicada para prisão de ventre, emagrecimento e diabetes, porém seu uso está associado com o risco de causar obstrução esofágica. O famoso chá de ginseng Panax ginseng pode ocasionar sangramento vaginal, alteração do estado mental, hipertensão, insônia e diarreias (Turolla & Nascimento, 2006; Carvalho et al., 2011).
No caso da ingestão de vegetais para alimentação, muitas toxinas podem ser eliminadas pelo cozimento, que ocasiona desnaturação destas substâncias e a quantidade de diversas toxinas também foi reduzida por meio de seleção artificial, porém muitas outras ainda assim permanecem. Já no caso da fitoterapia, a ingestão de chás e remédios que não passaram por teste de toxicidade implica na ingestão de uma bateria de toxinas que nem mesmo imaginamos os males que podem ocasionar. Desta forma, demonstra-se que sucos ditos “detox” não realizam nenhuma função de desintoxicação, pois os vegetais naturalmente possuem substâncias para defesa contra herbivoria e que podem nos prejudicar. Se quisermos um melhor funcionamento de nosso organismo, o melhor é evitar outras substâncias ainda mais tóxicas como excesso de bebidas alcoólicas, que podem resultar na inutilização de diversas células do fígado. E assim, dificultar seu funcionamento nos processos de desintoxicação por parte de substâncias ingeridas em alimentos essenciais como os próprios vegetais que apesar de trazerem benefícios também trazem um preço a se pagar pela sua ingestão.

Referências
Carvalho, F.K.L.; Medeiros, R.M.T.; Araújo, J.A.S.; Riet-Correa, F. 2011. Intoxicação experimental por Passiflora foetidae (Passifloraceae) em caprinos. Pesquisa Veterinária Brasileira 31(6): 477-481.
Nesse, R.M.; Williams, G.C. 1997. Por que adoecemos: a nova ciência da medicina darwinista. Campus/Elsevier. 287p.
Santos, M.A.T. 2006. Efeito do cozimento sobre alguns fatores antinutricionais em folhas de brócolis, couve-flor e couve. Ciência e Tecnologia de Alimentos 30(2): 294-301.
Turolla, M.S.R.; Nascimento, E.S. 2006. Informações toxicológicas de alguns fitoterápicos utilizados no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Farmacêuticas 42(2): 289-306.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Ciência, pensamento crítico e crenças

Autor: Mario Arthur Favretto


É comum ocorrer críticas a certos aspectos da Ciência, em especial seu ceticismo diante de certos eventos sobrenaturais e extraordinários citando certos pesquisadores de renome, possuidores de títulos de doutores e de grande quantidade de publicações em certas áreas do conhecimento, que acreditam nestes supostos eventos como verdades. Como se o fato de uma pessoa ter renome ou possuir e compartilhar de certas crenças com outras pessoas, tornassem estas verdadeiras.
Neste quesito esbarra-se no que é chamado de falácia da autoridade, abordada por Carl Sagan em seu livro O Mundo Assombrado pelos Demônios. Essa falácia (um raciocínio errado com aparência de verdadeiro) utiliza-se de apelos para autoridades em certas áreas, como por exemplo, se Einstein, que foi um grande físico, acreditava em evento A, logo esse evento deve ser verdadeiro. Porém, ao fazerem tais afirmações, especialmente relacionadas a coisas sobrenaturais e pseudocientíficas (e.g. homeopatia, heiki, chakras e afins), as pessoas não compreendem que o fato de alguém acreditar ou não em algo, ou de muitas pessoas, acreditarem ou não em algo, não torna isto verdadeiro.
Independente de a pessoa ter obtido ou não conhecimento em mais de uma área do saber, nossos cérebros ainda são sujeitos a falhas, por isso a Ciência utiliza-se de ferramentas como a experimentação, a comparação, a análise e descrição, e também da estatística, para tentar chegar o mais próximo possível de explicações da realidade. Pois se permanecêssemos apenas nos vislumbres imaginários, teríamos uma ampla gama de diferentes opiniões, todas podendo ser falhas devido a ilusões que o cérebro pode sofrer na tentativa de entender a realidade apenas numa visão pessoal e interna.
Por exemplo, uma maior quantidade de dopamina em certas regiões específicas do cérebro pode levar as pessoas a perceberem padrões que não existem no mundo, culminando em níveis extremos em casos de esquizofrenia quando há uma completa ruptura da realidade e a pessoa enxerga padrões completamente inexistentes. Em outros casos, níveis atenuados de dopamina podem influenciar as crenças das pessoas no sobrenatural e assim torná-las mais religiosas, enquanto uma redução deste neurotransmissor pode tornar a pessoa cética em relação ao sobrenatural e a divindades, não vendo mais os padrões inexistentes, ou seja, os agentes externos ao mundo visível. Assim, medicamentos e diferentes situações de vida (e.g. estresse), podem influenciar na quantidade de neurotransmissores em nosso cérebro e alterar nossa predisposição a certas crenças.
Dessa mesma forma estão predispostas autoridades, líderes religiosos e científicos, eles também são humanos, também possuem cérebros com a mesma fisiologia e assim estão sujeitos às mesmas falhas. Estas só podem ser evitadas por meio do cultivo do pensamento crítico, quando analisamos de forma efetiva as evidências que indicam um determinado fato, independente de terem sido proclamadas por uma autoridade ou de ser simplesmente propagada por senso comum. O pensamento crítico é um cultivo de um ceticismo sadio, onde nos tornamos detetives tentando entender o mundo por meio de toda uma cacofonia de crenças e superstições, ordens de autoridades e senso comum, que inundam nossas mentes com informações contraditórias, fazendo que precisemos separar o joio do trigo.
E isto só pode ser realizado quando tentamos apaziguar nossos desejos de sobrenatural ou certas crenças, e passamos a buscar entender realmente a realidade, sem querer ver fadas por todos os lados. As pessoas difundem suas crenças na expectativa de que quanto mais pessoas acreditem maiores serão as chances de que ela seja verdadeira e se deleitam quando uma suposta autoridade aceita essas mesmas crenças e exerce sua influência sobre os demais. Porém, tais desejos e autoridades não podem alterar a realidade, ela continuará a ser o que é, e nossa melhor forma de tentar entendê-la é pela Ciência e com o arsenal proposto por sua metodologia, doses de ceticismo, pensamento crítico, experimentação, análise, descrição, comparação de dados e observações, e estatística.

Referências:
Brancão, M.L. 2004. As bases biológicas do comportamento: introdução à neurociência. Ed. Gráfica Pedagógica Universitária. 244p.
Krummenacher, P., Mohr, C., Hacker, H., Brugger, P. 2009. Dopamine, paranormal belief, and the detection of meaningful stimuli. Journal of Cognitive Neuroscience 22(8): 1670-1681.
Shermer, M. 2012. Cérebro e Crença. JSN Editora. 391p.
Sagan, C. 2006. O mundo assombrado pelos demônios. Ed. Companhia de Bolso. 512p.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Um diálogo sobre Ciência e Religião

Autor: Mario Arthur Favretto

Este texto tem em sua função analisar o aspecto negativo que por vezes a utilização da Ciência para combater a Religião pode ter, onde ao invés de uma aproximação do conhecimento cientifico acaba-se por afastar as pessoas do mesmo. Isto gera situações em que se espalham ainda mais pseudociências e crendices prejudiciais tanto para a Ciência quanto para as Religiões mais tolerantes em relação a conhecimentos divergentes de suas bases dogmáticas.
A utilização da Ciência para a comprovação da não existência de divindades criadas pelos humanos, principalmente por ateus militantes, acaba gerando uma imagem popular distorcida da Ciência, onde esta passa a ser vista como uma inimiga de qualquer manifestação religiosa. Fato que não possui uma completa veracidade, talvez o aspecto mais conflituoso seja que a Ciência implica que certos aspectos dos livros supostamente sagrados estejam errados, mas não na inexistência de uma divindade em si. Considerando esta numa visão panteísta ou deísta, e não em uma divindade que interfere no mundo em resposta a pedidos, desejos e orações humanas.
Vamos pegar como exemplo inicial a teoria do Big Bang, atualmente tão combatida por religiosos, tal teoria implica na origem do Universo a partir do nada. É um fato curioso essa briga atual, pois inicialmente quem não gostou desta teoria foram os físicos e astrônomos. A teoria do Big Bang, também chamada inicialmente de hipótese do átomo primordial, foi desenvolvida pelo padre católico, astrônomo e físico Georges Lemaître, e por que os demais pesquisadores não apreciaram essa hipótese? Oras, pois se o Universo teve um momento inicial de surgimento, ele pode ter surgido do nada como pode ter surgido de uma divindade, por isso os demais pesquisadores preferiam as hipóteses que implicavam que o Universo era eterno, sem um começo e sem um fim.
Mas vejam que mesmo com essa resistência inicial, com o aumento de acúmulo de dados e pesquisas, a teoria do Big Bang acabou tendo uma melhor fundamentação e como os dados analisados demonstraram a veracidade desta ocorrência, a Ciência passou a aceitar este corpo teórico. Porém, os motivos que levam atualmente os religiosos a desgostarem dessa teoria, são incompreensíveis, pois muitos livros supostamente sagrados mencionam um momento de criação do Universo. Havendo, é claro, apenas divergências em relação ao tempo transcorrido entre o surgimento do Universo e vida.
Por que a Ciência então mesmo tendo aceitado uma criação para o Universo não aceitou plenamente junto com este fato a existência de uma divindade? Porque isto não foi demonstrado pelos dados obtidos, sabe-se que houve um momento de criação, mas não se sabe o que havia antes dele. E também pelo fato de que, é melhor manter a dúvida do que fazer afirmações errôneas sobre certos aspectos do Universo que ainda não podemos obter dados. E por quê? Porque se respondermos que o Universo veio de uma divindade, isso implicará no surgimento de mais perguntas, do que de respostas. Se uma divindade criou tudo, de onde surgiu essa divindade? Quem foi que criou a divindade? Se a divindade veio do nada, porque o Universo não pode vir do nada? Se a divindade pode ser eterna, por que o Universo ou o Multiverso não podem? Mantém-se então a incerteza.
Nosso segundo exemplo será a Evolução. Neste fato, temos também o mesmo problema anterior, a Evolução não implica na inexistência de uma divindade criadora, mas sim na questão de os livros supostamente sagrados estarem errados. Vamos por alguns momentos imaginar o seguinte, um divindade gera o universo num experimento próprio para ver qual a probabilidade de que um planeta entre milhares ou milhões poderá gerar vida, não é uma possibilidade? Ou vejamos da seguinte forma, a divindade acompanhou o desenvolvimento do Universo e interferiu para o surgimento da vida em algum lugar específico, porém vendo que este planeta é instável, dinâmico, com constantes mudanças, por que criaria espécies prontas e fixas? Para ter que ficar o tempo todo interferindo no andamento da vida? Não seria mais sensato criar espécies que sofram variações a cada geração e que assim poderiam estar em constante modificação e adaptação diante das alterações que ocorrem neste planeta? Assim elimina-se a necessidade da própria divindade ter que interferir a todo o momento em sua criação, pois ela mesma há de modificar-se ao longo do tempo e tornar-se adaptada diante das novas condições ambientes que surgem.

Assim percebemos, mesmo que rápida e superficialmente, que as duas áreas mais conflitantes entre Ciência e Religião não são mutuamente excludentes. É possível a existência de uma quimera entre ambos, não sei ao certo ainda se positiva ou negativa. Porém há esperança para a conciliação entre estas duas áreas, mantendo o pleno conhecimento científico, sem excluir uma ideia de possibilidade de divindade. O que realmente a Ciência implica é em tornar errônea uma interpretação literal dos mitos de criações religiosos, e possivelmente também, na impossibilidade de existência de uma divindade que interage com sua criação diante de qualquer aflição humana. Focando-se então numa visão panteísta/deísta, com ausência de certas manifestações sobrenaturais e pseudocientíficas propagadas por diversas mídias atualmente.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Um planeta instável


Autor: Mario Arthur Favretto

A superfície do planeta Terra não é estável e sempre ocorrem mudanças. Todos os anos é possível observar notícias sobre terremotos, maremotos e vulcões que entram em erupção. Há também eventos atmosféricos que provocam alterações na superfície, como furacões e enchentes. Estes eventos são um reflexo e um lembrete constante de que nosso planeta não é estável; a natureza é o oposto, extremamente dinâmica. Algumas dessas mudanças influenciam continentes inteiros, como é o caso da deriva continental. 
Questionamentos acerca da estabilidade e imutabilidade dos continentes foram feitos ao longo dos séculos por diversos geógrafos que notaram que as costas de diversos continentes poderiam encaixar-se umas nas outras, conforme se pode notar em um mapa. Porém, quem primeiro realizou estudos aprofundados para demonstrar estes fatos foi Alfred Wegener, com sua obra publicada em 1912, A Origem dos Continentes e Oceanos, que demonstrou que os continentes deveriam ser separados em placas tectônicas. Apesar disso, ele não demonstrou o que exatamente impulsionava a movimentação dos continentes (Bryson, 2005).

Alfred Wegener. Fonte: Wikimedia Commons.

Em 1944, o geólogo Arthur Holmes com a obra Principles of physical geology, demonstrou que o aquecimento radioativo gerado pelo núcleo da Terra, poderia gerar correntes de convecção nas camadas do manto (uma camada de estrutura da Terra localizada abaixo da superfície/crosta terrestre), assim influenciando a crosta terrestre e fazendo-a se mover (Bryson, 2005). Com toda essa movimentação a crosta terrestre acabou ficando dividida em diferentes partes, denominadas placas tectônicas. Com essa repartição nos pontos de encontro dessas placas pode ocorrer intensa atividade sísmica e vulcânica, devido à sua fragilidade.
Desta forma, no encontro de algumas placas, pode ocorrer, por pressão interna das correntes de convecção, um constante derramamento de magma, que ao se solidificar, auxilia a criar mais pressão que acaba por empurrar as placas tectônicas, fazendo-as se afastarem. Em outros pontos, uma placa tectônica pode estar sendo empurrada para cima de outra, com a de baixo sendo direcionada de volta para o manto. Esses movimentos podem ser lentos e constantes ou a pressão pode se acumular provocando um grande deslocamento da placa tectônica, semelhante ao observado no Japão com o maremoto de 2011, onde a principal ilha do país foi deslocada em 2,4 m para o leste e o eixo da Terra foi alterado em 10 cm (Shrivastava 2011). O maremoto e sismo que ocorreram no Oceano Índico em 2004, causaram uma movimentação na placa tectônica da Índia de até 20 m em alguns pontos, além de ter alterado a posição do Polo Norte em 2,5 cm e também a rotação da Terra (Walton 2005).
A placa que é empurrada para cima, com o acúmulo dessas alterações, pode acabar gerando grandes cadeias de montanhas, com eventuais deslocamentos que podem chegar a alguns metros durante eventos sísmicos, como Charles Darwin observou em sua viagem a bordo do Beagle quando visitava o Chile em 1835. Na ocasião ocorreu um grande terremoto, seguido de um maremoto, e que ocasionou a elevação de alguns pontos da costa. E na ilha de Santa Maria, localizado ao sul de Concepción (no Chile), conforme medições realizadas pelo capitão do Beagle, FitzRoy, a elevação da superfície chegou a 3 m (Keynes 2004, Darwin 2008, Darwin 2009).
Graças a essas alterações graduais que fósseis de moluscos marinhos podem ser encontrados no alto de montanhas, e conforme Darwin observou, em alguns locais os fósseis indicam que a crosta estava acima do nível do mar, tendo sido posteriormente submersa e novamente soerguida, havendo fósseis de moluscos marinhos e de árvores intercalados em diferentes camadas das rochas (Keynes 2004, Darwin 2008, Darwin 2009).
Outra implicação que demonstra a movimentação das placas tectônicas é que se os continentes permanecessem parados, todos os milhões de toneladas de matéria erodidas pelos rios e levadas aos oceanos anualmente (por exemplo, as 500 milhões de toneladas de cálcio), multiplicando-se por todos os milhões de anos que isto ocorre, deveria haver 20 km de sedimentos no fundo dos oceanos, fato que não ocorre (Bryson 2005). 
A questão é que os continentes se deslocam como uma esteira rolante, mas em geral lentamente. Em alguns casos, a partir do encontro de duas placas tectônicas, como ocorre no fundo do Oceano Atlântico em que se encontra uma cordilheira submersa, de norte a sul, eventualmente os picos desta cordilheira emergem, caso dos Açores e ilhas Canárias. No meio desta cadeia de montanhas localizada submersa no Oceano Atlântico há uma fenda, com até 20 km de largura e extensão de 19.000 km. Em algumas partes desta fenda o magma emerge e vai pressionando as camadas já solidificadas para as laterais e como indicam as datações realizadas, quanto mais próximas da fenda, mais recente é a rocha que emergiu do manto, e quanto mais distante, mais antiga (Bryson, 2005).
Multiplique-se estas alterações por milhões de anos, e o que temos são mudanças constantes na superfície terrestre, modificando os ambientes. Assim, para que as espécies sobrevivam, também precisam se modificar. Como muitas vezes a fauna e a flora são deslocadas junto com os continentes em suas movimentações ao longo de diferentes climas, acaba-se por criar um sistema natural de seleção. Aqueles indivíduos que possuem alguma característica que os torne mais aptos a sobreviverem e se reproduzirem diante das alterações ambientais, são os que passarão seu material genético adiante, mantendo sua “linhagem”, apesar das alterações que elas sofreram por influências genéticas e ambientais.

Referências:
Bryson, B. (2005) Breve história de quase tudo. São Paulo: Companhia das Letras.
Darwin, C. (2008) Viagem de um naturalista ao redor do mundo, v. 1. Porto Alegre: L&PM.
Darwin, C. (2009) Viagem de um naturalista ao redor do mundo, v. 2. Porto Alegre: L&PM.
Keynes, R.D. (2004) Aventuras e descobertas de Darwin a bordo do Beagle, 1832-1836. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Shrivastava, S. (2011) Earthquake shifts Japan islands and Earth axis. World Reporter. Disponível em: <http://www.theworldreporter.com/2011/03/earthquake-shifts-japan-islands-and.html> Acesso em: 17 de março de 2013.
Walton, M. (2005). Scientists: Sumatra quake longest ever recorded. CNN. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2005/TECH/science/05/19/sumatra.quake/index.html> Acesso em: 17 de março de 2013.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Os insetos e (um pouco sobre) sua importância na área forense


Autora: Emili Bortolon dos Santos


Os insetos formam o grupo mais diverso de animais em nosso planeta. Existem cerca de um milhão de espécies já descritas e em cada ordem em particular, há a estimativa de que muitos mais desses seres ainda estão para serem descobertos pela ciência. Estes animais possuem uma importância que não pode ser expressada apenas em palavras, são organismos extremamente relevantes, como exemplo, podem participar da ciclagem de nutrientes (devido principalmente a seus hábitos decompositores), atuar na polinização de espécies de plantas, e, em uma visão mais antropocêntrica, atuar no controle de pragas que prejudicam cultivares. Além disso, podem também possuir importância médica devido a tantos agentes etiológicos causadores de doenças que podem transmitir aos seres humanos e outros animais.
Os insetos podem ainda ter uma grande importância na área forense, que se ocupa da resolução de crimes e alguns outros problemas judiciais. Isso ocorre devido a seu hábito alimentar, pois para se desenvolverem, muitos insetos podem utilizar carcaças de outros animais para se alimentarem, ademais, podem ainda as utilizar para ovipositar ou ainda para predar as espécies que são atraídas pelas carcaças. Por outro lado, deve ser levado em consideração que os insetos podem se alimentar de produtos armazenados ou mesmo alimentos frescos, o que pode causar certo incômodo a algumas pessoas devido ao fato de estas poderem os encontrar em seus alimentos. Este é outro exemplo de utilização desses animais na Entomologia Forense, o que pode resultar muitas vezes em processos judiciais contra empresas alimentícias.
Mas como especificamente os insetos pode ser utilizados na resolução de crimes? Existe um termo na área criminalística que é denominado “Intervalo pós-morte”, que se trata do tempo que o corpo encontrado está morto. Para se determinar isso são utilizados vários fatores, como é o caso da temperatura corporal e rigidez cadavérica. Como já foi comentado, os insetos podem se sentir atraídos pelo cadáver ou por outros fatores relacionados a ele, e, assim, estes animais podem colonizá-lo. Assim, com base nos insetos encontrados pode-se estimar o intervalo mínimo e máximo de morte do agora cadáver.
Mas como isso é feito? Os insetos (grande parte imaturos) que são encontrados nas carcaças são coletados e criados em laboratório, para que se estime a duração de cada estágio de vida destes animais. Por exemplo, se uma larva de mosca de terceiro instar (estágio de desenvolvimento) é encontrada, pode-se criá-la nas condições mais similares possíveis ao ambiente natural e verificar o tempo de desenvolvimento de cada estágio. Isso vai gerar estimativas de quanto tempo atrás o inseto colonizou a carcaça. São feitos estudos geralmente em carcaças de porcos, onde os mesmos são acompanhados diariamente para verificar quais ordens de insetos colonizam estas carcaças em cada dia que passa.
Dessa forma, sabe-se atualmente que os primeiros insetos a colonizarem carcaças são dípteros (no caso, moscas), principalmente da família Calliphoridae. Além desta família, Muscidae e Sarcophagidae (Diptera) também podem ser encontradas nas fases iniciais, e insetos da ordem Coleoptera (besouros), como é o caso de Silphidae, Histeridae e Staphylinidae, estes ainda podem ser encontrados nas fases iniciais-intermediárias. Com relação ao final do processo de decomposição, os insetos que podem atuar são em sua maioria besouros, como os escaravelhos (Scarabaeidae). No entanto, muitos outras ordens, além de Diptera e Coleoptera (as mais frequentes), podem ser encontradas em carcaças, como é o caso da ordem Mecoptera.
A Entomologia Forense surgiu há cerca de 150 anos atrás, sendo considerada uma ciência jovem, no entanto, apesar disso, já está bem estabelecida. Para quem tem interesse nessa área, é relevante dizer que tem que se ter muita paciência, pois muitos dados podem ser afetados por alguns fatores, como os abióticos (e.g. temperatura, umidade). Porém, é uma área fascinante e ao mesmo tempo forma profissionais que possuem grande importância na sociedade, pois podem reconstruir cenas de crimes com bases em seres que muitos consideram insignificantes. Há que se levar em consideração que estamos em nosso planeta há um tempo ínfimo se formos comparar com o tempo que os insetos já estão estabelecidos. Mas mesmo assim, temos um grande poder em nossas mãos, que é o de contribuir para a melhoria da sociedade, assim como os entomólogos forenses o fazem.


Referências utilizadas

Amendt J. et al (2004) Forensic Entomology. Naturwissenschaften 91: 51-65.

Lindgren N.K. et al (2015) Four Forensic Entomology Case Studies: Records and Behavioral Observations on Seldom Reported Cadaver Fauna With Notes on Relevant Previous Occurrences and Ecology. Journal of Medical Entomology 52: 143-150.



Oliveira-Costa J. 2011 Entomologia Forense: Quando os insetos são vestígios. Campinas: Millennium. 502 p.



quinta-feira, 16 de abril de 2015

Darwin e suas motivações, muito além da compreensão da vida

Autor: Mario Arthur Favretto


Muitas pessoas acham que os estudos de Charles Darwin acerca da seleção natural aplicam-se apenas para a compreensão da evolução ou da natureza, muitos o condenam por querer aproximar o homem dos animais, porém desconhecem o lado humanista por detrás deste pesquisador. A família de Darwin sempre foi muito ativista em defender a libertação dos escravos e os direitos dos animais, Darwin logicamente herdou esta moral de sua família, fato comprovado por meio de seu repúdio em relação à escravidão demonstrado em seu livro “Viagem de um Naturalista ao redor do Mundo” quando então em visita ao Brasil presenciou as crueldades contra os escravos.


Neste aspecto é possível afirmar que ler “A Origem das Espécies” dentro do contexto histórico da época em que foi escrita torna-a muito mais envolvente. O período era de muita turbulência entre as pessoas pró-escravidão e as contra escravidão, os países escravagistas defendiam suas ideologias baseadas na Bíblia que afirma que os negros foram amaldiçoados e que no livro de Levítico defende a escravidão, ensinando até mesmo como surrar um escravo sem matá-lo e que pais podem vender seus filhos como escravos.
Assim se o livro sagrado fazia tais menções à escravidão se justificava, e muitos pseudocientistas da época utilizavam-se da frenologia para complementar a veracidade bíblica. A pseudociência da frenologia afirmava que o caráter de uma pessoa poderia ser definido pelo formato da cabeça da mesma e assim estes encontravam características para justificar a suposta inferioridade de povos africanos e indígenas. Além de haver outros que afirmavam que as diferentes raças humanas eram espécies diferentes criadas por deus independentemente, assim os brancos seriam divinos e os demais povos, apenas animais colocados no mundo para servirem aos filhos de deus (no caso, os brancos europeus).
Desta forma, a libertação de escravos precisava urgentemente ter uma justificativa embasada na ciência para firmar-se. Darwin e seus parentes acreditavam que como todos os homens descendiam de Adão e Eva a escravidão não era justificável, pois seriam todos parentes, tendo o referido casal como ancestral comum, assim como, todas as criaturas vivas sendo criações divinas não poderiam ser torturadas e escravizadas, mesmo com as justificativas bíblicas a favor da escravidão. Esta “causa” de provar cientificamente que a escravidão e a tortura em animais era algo injustificável foi um dos grandes impulsos para que Darwin prosseguisse com suas pesquisas e coletas de dados sobre a evolução.
Quando Darwin publicou o seu livro “Origem das Espécies” não estava apenas provando que as espécies podiam se modificar ao longo do tempo permitindo o surgimento de novas espécies, ele também indiretamente estava provando que todas as ditas “raças” humanas eram na verdade uma mesma espécie, mas com variações fenotípicas. Conforme fortemente demonstrado que também poderia ocorrer em outras espécies, como os pombos domésticos dos quais ele tratou intensamente em seus primeiros capítulos do referido livro, pois estas aves apresentam diversas diferenças físicas, assim como os cães, mas ainda são a mesma espécie. Justificando a ocorrência destas variações, também demonstrou-se que a escravidão não estava sendo realizada da espécie “homem branco divina” sobre o “animal negro”, mas que estava sendo realizada sobre indivíduos da mesma espécie, sobre irmãos e parentes ligados por um ancestral em comum.
Darwin só conseguiu derrubar a frenologia e outras justificativas escravagistas “pseudocientíficas” graças a grande quantidade de dados que ele reuniu demonstrando a ocorrência da seleção natural em diversas espécies e por toda a natureza, ele foi além dos seus familiares que realizavam ativismo pela libertação dos escravos. Ele provou por meio da ciência que os escravos eram a mesma espécie que o homem europeu, ele comprovou que por meio de modificações acumuladas ao longo do tempo todas as espécies compartilhavam um ancestral em comum. Claro que como consequência, estes dados acabaram por demonstrar que o mito bíblico sobre a criação dos seres vivos estava errado e que os humanos não estavam acima dos demais seres vivos.
Tirando o homem europeu de seu pedestal e colocando-o em igualdade aos demais povos do mundo, assim como, junto aos demais animais, Darwin derrubou uma visão que há muito prevalecia na Europa. Porém, muitos ainda consideravam os humanos como sendo superiores por possuírem sentimentos e seguindo a justificativa bíblica de que os demais animais existiam para servir ao homem, continuaram com diversas atrocidades, inclusive com as terríveis pesquisas de vivissecção, onde um animal é aberto ainda vivo para entender o funcionamento de sua fisiologia.
Darwin sendo extremamente contra o sofrimento e tendo inclusive largado a faculdade de medicina por não conseguir acompanhar as cirurgias (que na época eram realizadas sem anestesia), não pode deixar de realizar mais pesquisas para fundamentar a sua moralidade e de seus familiares contra o sofrimento de seres vivos, dando origem a mais outra obra “A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais”, assim como o seu “Origem”. Este livro também causou polêmica, comprovando que os outros animais também compartilham sentimentos humanos e que então muitas práticas humanas estariam causando grande sofrimento a estes seres.
Enfim, vemos que Charles Darwin também não foi apenas um pesquisador, ele utilizou a ciência para melhorar o mundo, demonstrando que tudo que era usado para justificar a escravidão e as torturas contra animais não possuíam qualquer fundamento. Estas defesas não ficam claramente expressas em suas obras, mas em suas cartas e anotações foi onde estas preocupações foram encontradas. Ele demonstrou um dos principais meios pelo qual as espécies evoluem, mas também derrubou o homem de seu pedestal divino, colocando-o junto aos outros seres e em igualdade. Uma lição de humildade para quem aprecia todos os aspectos da natureza.



·         A título de curiosidade, Darwin também comprovou que as plantas são polinizadas por insetos em seu livro “On the various contrivances by which British and foreign orchids are fertilized by insects, and on the good effects of intercrossing”. Na época acreditava-se que pelo fato de as flores possuírem tanto órgãos masculinos e femininos, o fato de insetos carregarem o pólen era simples erro do acaso. Porém, com a realização de diversos experimentos com orquídeas, tanto por meio de autofecundação e fertilização entre diferentes indivíduos, assim como por diversas observações a campo, ele demonstrou a importância dos insetos na polinização. Em consequência também reuniu diversos dados demonstrando a coevolução entre estes diferentes seres.

Para saber mais:


DESMOND, A. & MOORE, J. A causa sagrada de Darwin. Tradução de Dinah Azevedo. Rio de Janeiro: Record, 2009.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Ensaio cético I

Autor: Mario Arthur Favretto

A sociedade e as culturas ao longo de toda a história têm buscado explicações para os mais variados fenômenos que ocorrem no cotidiano humano, eventos aleatórios e coincidências sempre são interpretados como de origem paranormal. Aparentemente as pessoas não conseguem apreciar a realidade em sua plenitude, difícil compreender o motivo de não enxergarem sua beleza, sempre preferindo respostas mágicas.
As pessoas em geral simplesmente aceitam o que lhes é ensinado quando na infância, em uma época em que o cérebro ainda está se formando, pré-disposto a conhecer o mundo, os pais enchem a mente das crianças com convicções relacionadas ao paranormal. E assim estas ideias ficam impregnadas na mente humana, passadas de geração em geração, afastando as pessoas da beleza da realidade e do conhecimento científico. Se tais crenças permanecessem apenas para si não haveria problema nenhum, porém elas são levadas ao nível do fanatismo, assim os pais negam a seus filhos a liberdade de questionar e pensarem por si mesmos ou de modo diferente. Piorando a situação, doenças não são tratadas de forma correta pelo fato de as pessoas apelarem para a crença e não para a ciência médica e guerras são originadas em nome das crenças.
 O não questionamento permite que ideias sejam usadas para justificar as mais variadas barbáries e omissões, daí advém a necessidade do ceticismo, do questionamento, da dúvida. Se os eugenistas tivessem dúvidas quanto aos seus atos o holocausto teria ocorrido? Se os terroristas motivados pelo fanatismo religioso tivessem dúvidas quanto ás suas crenças, cristãos e islâmicos estariam em guerra desde a antiguidade? A convicção plenamente aceita pode gerar inúmeros atos atrozes.
             Onde então percebemos que apenas o amplo questionamento e análise por diferentes pontos de vista podem permitir um aperfeiçoamento do conhecimento humano, expondo todas as crenças ao crivo de um pensamento crítico. Relegando nossos desejos de existência de sobrenatural à lixeira de nossos pensamentos e permitindo que a racionalidade e o questionamento plena possam agir sobre as questões relacionadas ao avanço da ciência e do conhecimento. Sem mais atos originados de fanatismo, sem mais omissão de doenças em prol de curas supersticiosas inexistentes, sem mais impedir as pessoas de questionarem. O cotidiano em sua beleza real, pois um jardim não precisa ter fadas para ser considerado belo.

domingo, 5 de abril de 2015

Veneração ao sol

Texto escrito por Emili Bortolon dos Santos (escrito em 2009)

Se algum dia for obrigatoriedade minha e de todos, idolatrar algo composto por moléculas, o meu escolhido será o SOL... Sem ele, nenhum produtor seria capaz de realizar fotossíntese, transformando moléculas de H²O e CO² em glicose, a partir de processos metabólicos com a força das moléculas de ATP... Com esses processos, o oxigênio é libertado para o nosso cada vez mais impuro AR, nos possibilitando o ato de respirar. A glicose vai constituir parte da biomassa do produtor. Essa última por sua vez, servirá de alimento para o consumidor primário, que pode ser um pequeníssimo peixe... Ele será comido por um médio peixe, que provavelmente será alimento de algumas aves; algumas delas serão certamente capturadas por uma espécie considerada por muitos desentendidos, o ápice da evolução: Homo sapiens. Pronto. Estragou a minha perfeita percepção do sol. Essa espécie age como controladora de toda a matéria que se localiza ao seu redor, tampouco compreende ela, que é uma caloura em termos de vida no planeta.Não! Ela acha que não é. Ela sabe pensar. Ela é um ser racional. Está acima de qualquer outro composto orgânico presente no mundo vivo. Sim! Homo sapiens é um composto orgânico. Um simples composto orgânico.Esse composto orgânico em tempos primordiais receava ser atacado por selvagens animais, pois conviviam equilateralmente. Então, resolveu criar coisas absurdas para amenizar o medo, como por exemplo, um deus ou vários deuses (Sim, deus com letra minúscula. Creio que não seja nome próprio, nem de importância cabível, logo, deve ser iniciado com letra minúscula). Entretanto, o Homo Sapiens não tinha ideia do impacto que sua atitude causaria nas subsequentes sociedades.Com a sucessão da vida e as conseqüências do darwinismo social - onde o mais forte ou mais corrupto leva vantagens sobre o mais fraco ou menos apto para enfrentar o mal - pessoas com o poder de persuadir as outras, viram que aqueles deuses eram bons pretextos. Ótimos pretextos para conseguirem alcançar seus objetivos. Os tementes seguidores aceitavam tudo, sem reclamar. Enfim, a religião mudou o rumo da vida no planeta. Hoje em dia, como muitos falam, a igreja é a mais próspera empresa. Bilhões de pessoas pedem “favores a um ser invisível”. Pior ainda. Esses mesmos indivíduos imaginam que esse ser invisível é capaz de ouvi-las. Sim. Ouvir e ajudar bilhões de pessoas. Tudo ao mesmo tempo! Nossa... Realmente seria bom isso.Seria bom algo assim existir para construir a maior empresa da face da terra, dando assim, empregos para todas as pessoas. Isso resolveria grande parte dos problemas. Com o emprego, as pessoas poderiam se alimentar e educar seus filhos. Educação. A base da estrutura de toda uma vida. Sem ela, as pessoas estão fadadas a simplesmente viver suas vidas mal e porcamente, sem preocupação em ser parte da história de um povo.Voltando a personificação do sol, pensando bem, o homem, como um todo, não estraga a minha concepção. Afinal, bem ou mal, ele faz parte do ciclo da vida. Assim como as moléculas de uma aranha se decompõem e servem de composição a outros seres, igualmente, o mesmo processo ocorre com o ser humano. Ele vai servir de alimento para outros organismos, que certamente deixarão fragmentos não aproveitáveis no solo. Tais partículas serão decompostas pelos seres que, teoricamente fecham a teia alimentar, e então, as plantas usarão os nutrientes que se acumularam no solo para seu crescimento. E assim segue o percurso suntuoso da vida. Agora, fica uma pergunta: O que é mais importante, um deus ou o sol? Cada pessoa tem sua própria visão de resposta correta, é um direito de cada um. Mas o ser que pensa racionalmente, escolheria o sol por questão de imprestabilidade.
Por mais pessimista que possa ser, eu imagino um mundo onde a razão prevaleça sobre as religiões que de nada acrescentam de útil na vida do ser humano. Como falou Richard Dawkins: “Se apagarmos da história, os feitos da ciência e da teologia, qual exclusão teria mais impacto?”. 

A humanidade sofre de carência de pensamento. Talvez seja porque o ato de pensar nas coisas gere dúvidas. Dúvidas não são boas para a Empresa Religião. O dia em que todos voltarem para o mundo real, como se fosse uma regressão aos tempos primordiais de não fé, creio que muitos problemas simplesmente desaparecerão. E o sol. O sol “alegremente” receberá seu devido reconhecimento pelos feitos jamais substituíveis.