sexta-feira, 26 de junho de 2015

Déjà vu, neurologia e a falácia do sobrenatural

Autor: Mario Arthur Favretto


A grande maioria das pessoas já experimentou em alguma parte da sua vida uma sensação de que algo que ocorreu em um certo momento já havia acontecido antes ou de que ela já tinha visto aquilo antes em outra ocasião e o momento seria apenas uma mera repetição. Comumente esta sensação é denominada de “déjà vu” do francês, e significa “já visto” ou “já foi visto”. Porém a maioria das pessoas, por falta de um aprofundamento no conhecimento científico e, às vezes, por não saber onde encontrar informações confiáveis sobre o assunto, prefere aceitar a ideia de que isto seria alguma forma de ocorrência sobrenatural.
Como sempre as pessoas parecem querer encontrar o máximo possível de confirmações para suas crenças e anseios pela existência do sobrenatural, muito provavelmente derivado do medo da morte e de uma negação de que a vida possui um fim. Portanto, o déjà vu acaba por também ser usado para estas confirmações, com alguns grupos religiosos-místicos e alguns pseudocientíficos afirmando que a sensação de déjà vu é realmente algo que já ocorreu, mas em vidas passadas ou que são poderes de telepatia. Assim, para estes grupos, tal fenômeno neurológico seria uma confirmação de seus anseios pelo sobrenatural.
Porém, a ciência é mais bela do que o sobrenatural, que longe de ser uma resposta é apenas um consolo. Dizer que isto é fruto de vidas passadas e do sobrenatural traz mais perguntas do que respostas: existe uma alma? Se nossas memórias são armazenadas de forma bioquímica no cérebro, como podem interagir com algo imaterial e depois que a pessoa se decompôs em uma vida passada, voltar a agir novamente com a matéria de seu corpo atual? (Não vale dizer que é energia, pois energia é algo físico, não imaterial, é troca de elétrons e modificações de substâncias materiais). Onde estavam essas memórias, suspensas no ar? Se as memórias de vidas passadas ficam suspensas em um mundo paralelo para depois voltarem em outras vidas, por que uma pessoa com Alzheimer perde-as completamente? Oras, porque memórias são coisas físicas armazenadas bioquimicamente no cérebro e não coisas sobrenaturais.
Nossos humildes cérebros de símios foram moldados ao longo da evolução e como esta não produz a completa perfeição, nossos cérebros possuem falhas. O que ocorre nos momentos de déjà vu é que, provavelmente, o cérebro acessa as memórias imediatamente após “arquivá-las”, uma falha de comunicação, criando a sensação de que o fato que está ocorrendo é uma repetição. Estas ocorrências também podem ser induzidas no cérebro por estimulação com eletrodos no hipocampo e na amígdala cerebral, além de serem mais comuns em pessoas com certos tipos de epilepsia no lobo temporal do cérebro ou certos tipos de desordens psiquiátricas (Bartolomei et al., 2004; Wild, 2005).
Considerando, por exemplo, o hipocampo, ao longo do desenvolvimento do ser humano até atingir a maturidade ele é muito sensível a efeitos ambientais (ansiedade, estresse) e influências fisiológicas, sofrendo danos com efeitos de convulsões e inflamações ou de estresse psicossocial e privação de sono durante o desenvolvimento infantil. Assim, como esta região cerebral tem um papel fundamental na aquisição de memórias, situações como estas que afetam seu funcionamento ou desenvolvimento podem resultar em falhas na comunicação dos neurônios, ocasionando a sensação de déjà vu (Wild, 2005; Brázbil et al., 2012). Tanto que algumas pessoas podem apresentar disfunções neste funcionamento neuronal e passar de meses a anos tendo sensações constantes de déjà vu (Akgül et al., 2013; ver site nas referências).
O déjà vu não é um fenômeno sobrenatural, é um fenômeno físico, ocorre na comunicação entre neurônios. Indo mais além, podemos considerar que a crença da origem sobrenatural deste fenômeno, longe de ser benéfica e consoladora, pode ocultar problemas e doenças neurológicas ou outros fatores relacionados à vida cotidiana da pessoa que podem estar implicando na ocorrência deste problema. Eventos isolados de déjà vu podem ser uma simples disfunção corriqueira no funcionamento do cérebro, compatível com uma neuropsiquiatria normal, mas sua constância elevada pode implicar em causas mais sérias que necessitam de tratamento e auxílio médico (Wild, 2005). Fato que não poderia ser constatado se nós permanecêssemos na crença sobrenatural.

Referências
Akgül, S.; Öksüz-Kanbur, N.; Turanlı, Güzide. 2013. Persistent déjà vu associated with temporal lobe epilepsy in an adolescent. The Turkish Journal of Pediatrics 55: 552-554.
Bartolomei, F.; Barbeau, E.; Gavaret, M.; Guye, M.; McGonigal, A.; Régis, J.; Chauvel, P. 2004. Cortical stimulation study of the role of rhinal cortex in déjà vu and reminiscence of memories. Neurology 63: 858-864.
Brázdil, M.; Marecek, R.; Urbánek, T.; Kaspárek, T.; Mikl, M.; Rektor, I.; Zeman, A. 2012. Unveiling the mystery of déjà vu: the structural anamoty of déjà vu. Cortex 48(9): 1240-1243.
Wild, E. 2005. Déjà vu in neurology. Journal of Neurology 252: 1-7.

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